segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Atualidade e Universalidade do Pensamento de Álvaro Cunhal


Rita Matos Coitinho*

O Partido com Paredes de Vidro

Este ano, em novembro, completaria 100 anos de vida o dirigente comunista, artista e destacado intelectual português Álvaro Cunhal. Autor de textos sobre temáticas variadas, que vão da conjuntura e ação partidárias à teoria da arte, o legado de Cunhal será reeditado este ano pelo PCP, como parte das comemorações do seu centenário.

Nas palavras de Jerónimo de Souza, secretário-geral do PCP no 19º Congresso partidário, realizado em dezembro último, "as comemorações do centenário do nascimento de Álvaro Cunhal serão a justa homenagem ao homem, ao comunista, ao intelectual, ao artista, figura central do século 20 e princípio deste século e que se afirmou como referência na luta pelos valores da emancipação social e humana no país e no mundo, e para todos aqueles que abraçam a luta libertadora de todas as formas de exploração e opressão do homem e dos povos. Que deu uma contribuição inigualável para o Partido que temos e o Partido que somos, o seu Partido de sempre – o Partido Comunista Português. (...) o seu pensamento e ação política, a sua história pessoal de combate pela liberdade, a democracia e o socialismo, não podem passar ao lado de todos os que se preocupam com os problemas que a sociedade enfrenta, de regressão social e civilizacional, no quadro de uma aguda crise sistêmica do capitalismo".


Dentre as inúmeras e valiosas contribuições de Cunhal destaca-se, pela atualidade e pela riqueza de detalhes, a obra dedicada a registrar e revelar ao público o funcionamento do Partido Comunista Português, O Partido com Paredes de Vidro (1), editado pela primeira vez no início dos anos 1980. 

Com análise histórica e exemplos da vida prática, o livro abarca quase em sua totalidade os variados aspectos da vida partidária, do funcionamento dos núcleos de base à direção, da atitude dos militantes frente à vida pessoal e à conduta partidária, da unidade de ação às questões da crítica e da autocrítica, da política nacional ao internacionalismo proletário. 

Escrito em linguagem simples e acessível, rico em exemplos e inovador na aplicação dos princípios do marxismo-leninismo, O Partido com Paredes de Vidro é texto que extravasa os limites das fronteiras nacionais portuguesas, sendo leitura indispensável a todos os comunistas em qualquer país do mundo. Um clássico do pensamento socialista do século 20.

Um instrumento de investigação e um estímulo à criatividade

Em seu livro, Cunhal reforça a centralidade do marxismo-leninismo como sistema de teorias que explicam o mundo e indicam como transformá-lo. Como instrumentos indispensáveis à análise científica da realidade e à definição de soluções concretas para os problemas concretos que a situação objetiva e a luta colocam às forças revolucionárias, os princípios e o método do marxismo-leninismo constituem-se em patrimônio teórico e enriquecem-se com a assimilação crítica das experiências históricas. Duas posturas diante do marxismo-leninismo devem, no entanto, ser rejeitadas: a cristalização dos princípios e a tentativa de responder às novas situações com elaborações teóricas especulativas e apriorísticas. 

A questão da cristalização dos princípios é a aplicação da teoria como dogma e não como instrumento de análise, a sacralização dos textos dos mestres do comunismo, a substituição da análise das situações e dos fenômenos pela transcrição sistemática e avassaladora dos textos clássicos como respostas que só a análise atual pode permitir. De maneira jocosa, Cunhal resume a situação da seguinte forma: com tais critérios dir-se-ia que alguns colocam como tarefa não aprender com os clássicos para explicar e transformar o mundo, mas citar o mundo para provar a onisciência dos clássicos.

O entendimento da teoria marxista-leninista como instrumento de análise é a negação do dogmatismo. É a permanente confrontação da realidade com a teoria e o desenvolvimento criativo do pensamento em interação com a prática. Por outro lado, a segunda ressalva – do uso de elaborações especulativas e apriorísticas – refere-se a um problema oposto: o abandono dos princípios do marxismo-leninismo e das experiências de validade universal do movimento revolucionário com uma vulgar preocupação em dar valor às "novidades" sem no entanto verificar sua validade de maneira criteriosa. 

Cunhal aponta para o modismo de se separar o marxismo do leninismo, como se negar o desenvolvimento da teoria em sua unidade fosse uma inovação. "O que dizem rejeitar de Lênin? Simplesmente o papel revolucionário e de vanguarda da classe operária, substituindo-o efetivamente pelo papel de vanguarda dos intelectuais e da pequena burguesia urbana. Dizem rejeitar a concepção de aliança da classe operária com o campesinato substituindo-a por uma aliança indefinida de forças sociais heterogêneas. Dizem rejeitar a teoria do Estado e a teoria do Partido. Dizem rejeitar a crítica leninista à democracia burguesa e ao parlamentarismo burguês como formas políticas de opressão econômica e social e descobrem-lhes valores que sobrepõem aos objetivos de emancipação social. Dizem rejeitar métodos de acesso da classe operária ao Poder." 

Em síntese, ao separar Marx de Lênin, negam o próprio marxismo, pois as formulações de Lênin são basicamente desenvolvimentos e aplicações práticas dos princípios básicos formulados por Marx e Engels. Negam, por fim, a própria validade do partido revolucionário e da luta de classes. Acreditando "inovar", os pseudomarxistas repõem na ordem do dia ideias ultrapassadas, desacreditadas já na época em que Lênin combatia a velha socialdemocracia reformista.

Para Cunhal a atitude necessária aos partidos comunistas é o permanente enriquecimento e desenvolvimento do marxismo-leninismo, entendido não como conjunto de dogmas, nem tampouco como caricatura da história. Uma teoria em movimento, constantemente enriquecida pelo avanço da ciência, pelos resultados da análise dos novos fenômenos, pela rica e variada experiência do processo revolucionário. Uma obra coletiva, resultante da luta e do trabalho teórico e criativo do movimento comunista internacional.

O Partido Comunista: obra coletiva, natureza de classe

O Partido com Paredes de Vidro é ao mesmo tempo um balanço e uma defesa dos princípios e métodos do partido comunista. Resgata a história do PCP e avalia os problemas e avanços conquistados em sete décadas (à época em que o livro foi escrito) de existência, várias da quais na clandestinidade até o sucesso da Revolução dos Cravos, quando a derrota do fascismo possibilitou a existência legal dos partidos em Portugal.

O texto exalta a experiência acumulada, as soluções encontradas para cada situação histórica, os erros e acertos que conduziram o PCP até o formato que tem na atualidade, com destacada inserção na sociedade portuguesa. Algumas questões a experiência demonstrou serem centrais na existência do partido comunista. Sem determinados princípios perde-se a essência, capitula-se diante das pressões da burguesia.

Necessário, portanto, refletir sobre o passado, sobre as ações do coletivo e também sobre experiências individuais dos militantes. Cultivar o espírito da abertura à crítica e à autocrítica, aprender com os exemplos dos partidos em outras nações, cultivar a valorizar o internacionalismo. Nas palavras do escritor, o passado é a prova, o presente o testemunho, o futuro a confiança. "A perspectiva histórica de um partido afere-se pelo que fez, pelo que faz e pelo que mostra estar em condições de fazer. Afere-se pela ligação do seu ideal, dos seus objetivos, da sua ação à classe ou classes às quais historicamente o futuro pertence. Nesse duplo aspecto (...) fundamenta-se a sua profunda e inabalável confiança no futuro."

Algumas lições merecem destaque. A primeira delas é a ligação do partido com a classe trabalhadora. O vínculo com a classe é a essência e substância da ação do partido. A natureza de classe afirma-se e revela-se em cinco princípios: na ideologia, nos objetivos, na composição social, na estrutura orgânica, no trabalho de massas e, de uma forma geral, em todos os aspectos da sua atividade.

A experiência internacional demonstra que quando se enfraquece a natureza de classe de um partido comunista, rapidamente se tende: à negação dos princípios teóricos, com "inovações" que refutam a validade dos princípios leninistas; à revisão da estratégia, adotando-se objetivos reformistas e um criticismo recorrente às experiências históricas na construção do socialismo; à redução sistemática do percentual de operários que compõem o partido, pois que se passa a priorizar outros segmentos da pequena burguesia urbana; ao relaxamento da estrutura orgânica, subestimando-se a importância dos núcleos de base na vida partidária, substituindo-os por grupos e plenários heterogêneos; finalmente, tende-se a subestimar o trabalho de massas quando a natureza de classe se enfraquece, dando-se importância central às agendas da institucionalidade burguesa.

A classe operária tem papel decisivo no processo de construção do socialismo. É classe que traz em si as contradições fundamentais com o capital. Subestimar o seu papel na construção do partido é, em última análise, subestimar a luta de classes. Respeitadas as características próprias de cada país ou região, onde a classe trabalhadora pode ser mais ou menos numerosa, é necessário que o partido busque integrá-la aos seus quadros, promover operários às direções, em todos os níveis. Essa é a "regra de ouro" que Cunhal buscou sistematizar e aplicar ao PCP.

Outra lição que merece ser destacada é a questão do funcionamento do partido. Cunhal debruçou-se com afinco aos vários aspectos da organização partidária, das células ao Comitê Central. Em resumo – pois que o presente artigo não pretende substituir a leitura do livro – pode-se destacar a importância atribuída à noção de que o partido é obra coletiva.

A democracia partidária é garantida pelo seu funcionamento regular. Estando devidamente estruturado em células, direções intermediárias e Comitê Central, todas as questões do trabalho de massas e da política partidária resultam da construção e do debate de cada militante. Não há autoritarismo possível se cada um ou cada uma tem o dever e a oportunidade de discutir as orientações do partido. Se cada ação – da organização de um ato de massas à Festa do Avante!, de uma greve ao congresso do partido – é resultado da interação entre dezenas de camaradas, que realizam suas tarefas e delas prestam contas, em todos os níveis, está garantida a democracia partidária. O centralismo democrático é o resultado da obra coletiva, e nenhum membro do partido, militante ou dirigente, pode eximir-se de prestar contas ao coletivo ou agir como se estivesse acima do partido.

Necessário, portanto, cultivar valores morais e práticas políticas compatíveis com o espírito coletivo. O combate sistemático à ideologia burguesa, ao individualismo, ao carreirismo e ao autoritarismo passa tanto pela valorização das expressões culturais e modos de vida do povo trabalhador quanto pelo exercício do controle da realização das tarefas (de uma instância por outra), pelo respeito às decisões partidárias, pelo estímulo à manifestação de cada militante nos debates e à prática da crítica fraterna e da autocrítica. 

Da mesma maneira, o estímulo à prática da autocrítica deve estar combinado ao exercício da tolerância e do incentivo ao crescimento político de cada quadro. Reconhecer que errou – o indivíduo, ou o coletivo – deve ser o ponto de partida para a tentativa de não errar novamente. As práticas de perseguição aos militantes, de rotulação de posições, não são compatíveis com o funcionamento democrático do coletivo partidário nem com uma política coerente de formação de quadros – pois que os quadros se formam e avançam na prática política e quem está imerso na luta está sujeito a cometer erros. Da mesma maneira, o partido comunista não pode tolerar ou ignorar suas falhas e de seus membros. Deve estar atento e preocupado em apurar os equívocos e apontar devidamente as responsabilidades. 

É também incompatível com a construção coletiva do partido a formação de "correntes de opinião" internas, com o isolamento sistemático de tal ou tal dirigente ou militante, sob risco de se criar uma atmosfera de desconfiança e ruptura da unidade de ação. A unidade do partido comunista é o seu maior patrimônio. E ela se baseia na confiança no trabalho do coletivo. "O partido é um imenso coletivo de homens e mulheres cujo andamento é determinado por todos e cada um. (...) A unidade do Partido é o cimento da sua força."

Renovar-se para seguir na luta, não ceder às pressões ideológicas da burguesia

O partido marxista-leninista surgiu em contraposição ao velho e desgastado modelo de partido socialdemocrata. O "partido de novo tipo", expressão cunhada por Lênin, é o partido que se propõe a ser vanguarda da luta da classe trabalhadora em direção à revolução socialista. A experiência do partido bolchevique russo inspirou em numerosos países a ruptura com a socialdemocracia pelos setores mais consequentes da classe operária e a criação de partidos "de novo tipo", o tipo que hoje chamamos leninista.

A independência dos partidos leninistas frente à política da burguesia esteve sempre ligada à sua independência de classe. Já Marx e Engels apontaram a necessidade de organizações independentes de forma a que os partidos operários não fossem explorados e postos a reboque pela burguesia (2). Sublinhava Engels: "a política que é preciso fazer é a política operária: é preciso que o partido operário seja constituído não como a cauda de qualquer partido burguês, mas como partido independente, que tem o seu objetivo, a sua própria política (3)".

Essa independência de classe revela-se nos mais variados aspectos da atuação partidária. Um desses aspectos é a já referida atenção à composição do partido, que deve preocupar-se em trazer para suas fileiras as lideranças destacadas da classe trabalhadora. Outro é o cuidado com a inserção e a influência política nos movimentos de massas. Também o reconhecimento e o uso inovador dos princípios do marxismo-leninismo, a preocupação com a unidade de ação, com a democracia interna e com o centralismo democrático, características fundamentais do partido de novo tipo. 

A pressão ideológica da burguesia se dá no cotidiano. Os militantes do partido trabalham, estudam e convivem e são cobrados e pressionados diariamente pela visão de mundo da burguesia. A atuação nos governos e nos parlamentos – que deve ser encarada pelos comunistas como tarefas a serem realizadas da melhor maneira possível de modo a dar destaque ao partido e aproveitar os espaços para fazer a defesa dos interesses da classe trabalhadora – muitas vezes é apresentada, pelos ideólogos da classe dominante, como o único espaço legítimo da política, incentivando o personalismo e o carreirismo próprios da política burguesa. 

Cunhal alerta para o perigo de se substituir os princípios orgânicos do partido pelos métodos de funcionamento eleitoralista, autoritário e corrupto dos partidos burgueses seria também uma grave capitulação da própria independência de classe. 

Em realidade, Cunhal demonstra que os desvios pequeno-burgueses que buscam "renovar" o partido comunista nada mais fazem que propagandear um retrocesso histórico. Os comunistas romperam com a forma burguesa de organização quando se afastaram da socialdemocracia. Renovaram-se frente à política da classe dominante quando refutaram seus métodos e colocaram na ordem do dia a primazia dos interesses das classes trabalhadoras frente à agenda da burguesia. 

Nas palavras do dirigente português, "(...) quando alguns dizem que, para vencer certas reservas e suspeições o Partido deveria 'mudar a imagem', o que querem dizer afinal não é que o Partido deveria mudar de imagem, mas que deveria tornar-se um partido tal como o anticomunismo gostaria que fosse. Que, em vez do partido revolucionário que é, partido e vanguarda da classe operária e de todos os trabalhadores, partido lutador coerente e infatigável pelos interesses do povo, pela liberdade, pela independência nacional e pelo socialismo, partido patriótico e internacionalista, se tornasse um partido inofensivo para a burguesia e a reação. 

Um partido que perdesse sua natureza de classe e abandonasse a sua política de classe. Que amoldasse a sua política aos critérios da burguesia e não aos critérios do proletariado. Que aceitasse a imobilidade das estruturas socioeconômicas capitalistas. Que quebrasse os seus laços de amizade com o movimento comunista internacional (...) 

Que limitasse a sua ação à concorrência a eleições realizadas segundo os ditames da burguesia e à ação parlamentar de alguns deputados conformados com a rotina da sua própria ação. Que se tornasse um partido com um programa e uma atividade socialdemocratizantes. Que desistisse dos seus objetivos do socialismo e do comunismo. Em resumo: um partido assimilado pela sociedade burguesa, a sua ideologia e a sua amoralidade." 

A defesa das feições do Partido Comunista é a afirmação de sua luta e de sua estratégia, dos ideais de libertação da classe trabalhadora da opressão capitalista. O Partido com Paredes de Vidro, escrito por Álvaro Cunhal e aprovado pela Comissão Política do Comitê Central do PCP na década de 1980, é mais do que um documento histórico e um diagnóstico das estruturas do partido. É um manifesto em defesa dos princípios do marxismo-leninismo, um guia para a reflexão e a organização autônoma da classe trabalhadora. 

É a afirmação da agenda necessária ao fortalecimento da luta pelo socialismo que hoje, com a crise generalizada no centro do capitalismo e a escalada das guerras imperialistas, demonstra ser o horizonte possível e necessário aos povos de todo o mundo. A força do partido comunista é sua natureza de classe, o vínculo profundo com os movimentos de massas, o internacionalismo, a defesa da soberania. Seu objetivo, a construção do socialismo. Por sua justeza e universalidade, essas ideias precisam ser conhecidas por toda a militância comunista. Fica aqui o convite à leitura.

Notas:

1 - Todas as citações do livro referem-se à seguinte edição: CUNHAL, Álvaro. O Partido com Paredes de Vidro. Lisboa, Edições "Avante!", 5ª edição: 1985. Texto disponível em formato PDF em: Clique aqui.

2 - Esta formulação está presente do texto de Marx e Engels: Mensagem da Direção Central à Liga dos Comunistas. Citado em CUNHAL, 1985.

3 - Discurso sobre a Ação Política da Classe Operária; cf. MARX & ENGELS, Obras Escolhidas em três tomos, Edições "Avante!" e Edições Progresso, tomo 2, páginas 267 e 268. Citado em CUNHAL, 1985.

*Rita Matos Coitinho é mestra em sociologia, cientista social e militante do PCdoB em Santa Catarina.

Fonte: Vermelho

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